Há dois anos, no dia 8 de janeiro de 2023, o Brasil assistia a um dos episódios mais marcantes da história recente do país: os atos de invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, em Brasília. Revoltados com a derrota nas urnas, apoiadores do ex-presidente da República Jair Bolsonaro pediam o cancelamento das eleições, intervenção militar, a volta do AI-5 e o impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Mas uma pergunta ainda está sem resposta: quando exatamente começa o movimento golpista que culminou com os atos de 8 de janeiro?
O programa Caminhos da Reportagem desta segunda (6), às 23h, na TV Brasil, entrevista jornalistas, escritores, senadores, psicólogos, além de um ministro do STF e do Diretor Geral da Polícia Federal, para traçar a cronologia da tentativa de golpe. Todos coincidem na opinião de que o golpe começou a ser gestado muito antes do período final do governo de Bolsonaro.
Recentemente, um relatório da Polícia Federal, fruto de extensa investigação, apontou a existência de um plano, intitulado Punhal Verde Amarelo, que tinha como finalidade o assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva; do vice Geraldo Alckmin; e do ministro do STF, Alexandre de Moraes.
“Creio que na primeira vez na história um inquérito se aprofundou tanto nessa temática e permitiu, infelizmente, nos mostrar a que momento chegamos e o quanto estávamos de fato muito próximos a um golpe de Estado”, afirma Andrei Rodrigues, Diretor Geral da Polícia Federal.
“Esse movimento é bastante anterior ao próprio Bolsonaro. Já vinha de uma insatisfação desde a Lava Jato e a grande movimentação pós 2013. A gente teve o impeachment da Dilma, a prisão do Lula. Então tem um grande caldeirão político em parte da sociedade que havia jogado a esquerda no que se imaginava ser um corner político. E Bolsonaro soube manipular muito bem esses sentimentos já na eleição de 2018, aventando a possibilidade de fraude eleitoral e a pauta do voto impresso”, explica o jornalista e escritor Leandro Demori.
A jornalista Juliana Dal Piva defende que o radicalismo foi sendo gestado ao longo do tempo e se intensificou durante a presidência de Bolsonaro. “Principalmente nos últimos meses, pós eleição, quando ele já não reconhece a vitória do presidente Lula e some das últimas cerimônias do governo. Agora nós sabemos que eles estavam planejando detalhadamente, inclusive imprimindo, um golpe”, afirma Dal Piva, em relação aos fatos apresentados no inquérito da Polícia Federal, que revelou a construção da tentativa de golpe de Estado.
A operação da PF, intitulada Contragolpe, revela que o plano foi criado no mês de novembro de 2022, com equipes formadas por militares das Forças Especiais (FE), os chamados kids pretos, que monitoravam o cotidiano e itinerários do ministro e do presidente.
“O que nós fizemos para permitir que isso acontecesse? O que nós devemos fazer para que se evite isso? Acho que a politização das Forças Armadas e da Polícia é muito ruim para o sistema e de alguma forma é a causa desse fenômeno que ocorreu”, afirma Gilmar Mendes, ministro do STF, em relação a participação de militares na tentativa de golpe.
A investigação da PF trouxe à tona o envolvimento de vários generais, tanto no plano Punhal Verde e Amarelo, quanto na incitação das manifestações e dos acampamentos, inflamando o clamor de bolsonaristas pela intervenção militar.
Um áudio, revelado pela investigação, mostra o general da reserva Mário Fernandes conversando com o então ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, Luiz Eduardo Ramos. Ele diz: “não dá mais pra gente aguentar essa p*. E outra coisa, nem que seja para divulgar e inflamar a massa. Para que ela se mantenha nas ruas. Talvez seja isso que o Alto Comando, que a Defesa, quer: o clamor popular, como foi em 64”.
No entanto, diversos entrevistados no programa concordam que, apesar da adesão à tentativa de golpe por alguns militares, as Forças Armadas foram fundamentais para a manutenção da democracia. “Como qualquer instituição feita por pessoas, havia pessoas a favor e contra. E o Alto Comando, isso as investigações estão mostrando, já tinha feito uma barreira para qualquer tentativa de virada de mesa ou de golpe de Estado”, conta Felipe Recondo, jornalista e escritor.
Em ato realizado nesta quarta-feira (8) no Palácio do Planalto, 21 obras restauradas após o 8 de janeiro retornaram oficialmente ao acervo da Presidência da República – incluindo um relógio pêndulo do século 18 e um quadro do artista Di Cavalcante. “A preservação desse legado que une cultura, história e democracia é responsabilidade de todos”, destacou a primeira-dama Janja da Silva, durante a cerimônia.
“A memória é um dos alicerces mais importantes da nossa identidade enquanto brasileiros. Sua preservação não é a apenas uma homenagem ao passado, mas também um compromisso com o futuro”, disse. “O restauro das obras de arte do palácio é a parte desse esforço comum com a nossa democracia. Não conseguiram impedir a liberdade nem destruir a beleza. Contra a violência e cinza do autoritarismo, fazemos brotar o colorido da nossa cultura e a alegria do nosso povo”.
A restauração das peças, segundo Janja, contou com a colaboração do governo da Suíça e da embaixada da Suíça no Brasil, do Ministério da Cultura por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e da Universidade Federal de Pelotas.
O conjunto de invasões e depredações nos prédios da Praça dos Três Poderes em Brasília na tarde de 8 janeiro de 2023, um domingo, chocou pela violência protagonizada por manifestantes bolsonaristas, mas não surpreendeu a todos os personagens que, por razões de ofício, acompanham o cotidiano institucional da capital federal, como jornalistas e políticos.
Naquele dia, a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) recorda-se que estava em sua casa em São Luís, depois de ter ido à Assembleia de Deus, onde atua como professora de escola bíblica dominical, quando viu uma mensagem em grupo de Whatsapp com imagens de destruição em Brasília.
“Eu falei: gente, isso aqui não pode ser verdade. Isso é uma montagem, não é verdade”, contou ao programa Caminhos da Reportagem, da TV Brasil, com participação da Agência Brasil.
Brasília (DF) 06/06/2023 Senadora e relatora da CPMI do golpe, Eliziane Gama. Foto: Lula Marques/ Agência Brasil
Assustada, a parlamentar foi à casa de sua mãe onde a televisão estava transmitindo a barbárie ao vivo.
“Eu fiquei estarrecida. Levei minutos para acreditar no que estava vendo”, diz se recordando da multidão subindo a rampa do Congresso Nacional, quebrando vidros do prédio e ocupando um pedaço do Senado Federal, onde cumpre mandato há cinco anos.
O impacto foi revivido quando na segunda-feira seguinte (9), de volta de São Luís, Eliziane Gama encontrou “um ambiente desolador, de guerra” no Senado. “Parecia um filme de terror: o prédio totalmente escuro, [com] o chão totalmente molhado, [e] as vidraças destruídas. Você não conseguia caminhar dentro do Congresso Nacional.”
Ainda pasma com a voracidade destrutiva dos invasores, a senadora revela que a possibilidade de distúrbio ainda que absurda estava no horizonte.
“O que ocorreu era algo que a gente vigiava, que a gente dizia que não pode acontecer, mas a gente nunca parou para pensar e dizer que isso vai acontecer.”
Na opinião de Eliziane Gama, que foi relatora da CPMI do 8 de janeiro, tudo que se viu foi semeado durante anos por Jair Bolsonaro quando ocupava a Presidência da República (2019-2022) e atentava contra a democracia.
“Ele questionava o processo da eleição, colocava em xeque a vulnerabilidade da urna eletrônica. Então, essa coisa de criar uma instabilidade do processo democrático, ele automaticamente criou um colchão de condições para que o movimento mais extremista brasileiro chegasse ao que nós acompanhamos no 8 de janeiro.”
Assinatura de Bolsonaro
O 8 de janeiro tornou-se uma data na qual as pessoas costumam lembrar onde estava, e o que estavam fazendo quando receberam a notícia de impacto, como aconteceu nas transmissões do primeiro pouso do homem na lua (1969), do acidente fatal de Ayrton Senna (1994) ou do choque dos aviões contra as Torres Gêmeas do World Trade Center em Nova York (2001).
Como aconteceu com a senadora, a jornalista e escritora Bianca Santana lembra-se vivamente onde estava quando soube dos incidentes: tinha aterrissado em Brasília vindo de São Paulo naquela tarde de domingo. Ainda estava no avião quando começou a receber mensagens no celular indagando se tinha chegado bem.
Curiosa, começou a pesquisar no aparelho o que estava acontecendo. Uma amiga a buscou no aeroporto da capital federal e a levou direto para casa.
“A gente decidiu ficar recolhida. Nem saiu para comer.”
Para Bianca Santana, a intentona que viu inicialmente pela tela do celular “tinha uma assinatura muito forte.” Ela rememora que Jair Bolsonaro instigou a balbúrdia, esvaziando a credibilidade do sistema de votação. “Ele anunciou inúmeras vezes que não aceitaria o resultado das urnas.” Para ela, o ex-presidente “o tempo todo colocou em xeque a confiança da população no processo eleitoral. Isso já é um processo de tentativa de golpe.”
Brasília (DF), 11/09/2024 – Leandro Demori no programa DR com Demori. Foto: Bruno Peres/Agência Brasil
Na opinião do jornalista Leandro Demori, que apresenta o programa Dando a Real com Leandro Demori, na TV Brasil, os sentimentos contra a democracia foram provocados por Jair Bolsonaro antes mesmo de chegar ao poder.
“Na eleição de 2018, [Bolsonaro] já havia aventando a possibilidade de fraude eleitoral, a pauta do voto impresso, e [a ideia] que o sistema não era seguro. Isso tudo acaba desembocando no 8 de janeiro.”
A jornalista Juliana Dal Piva, autora do livro O Negócio do Jair: a história proibida do clã Bolsonaro, avalia que o ex-presidente “criou uma narrativa em cima de uma mentira e foi intensificando essa mentira” com o passar do tempo, especialmente nos dois últimos anos de mandato, e apesar da disseminação de falsidades ”se recusava a admitir que ele não tinha prova.” Ela lembra que Bolsonaro “foi eleito e reeleito [para] vários mandatos como deputado federal [total de seis mandatos] e como presidente da República pelo sistema eletrônico de votação.“
Golpe encenado
Ter atos contra a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva era esperado pelo senador do Randolfe Rodrigues (PT-AP).
“Eu sabia que eles não aceitariam pacificamente o resultado das eleições de 30 de outubro de 2022. Eu tinha consciência disso. Então, para mim, não foi surpresa.”
Ele, no entanto, admite o estarrecimento com a falta de iniciativa das forças de segurança para proteger os prédios públicos.
“O que eu não esperava era a negligência coordenada e organizada para permitir que eles acessassem as sedes dos Três Poderes – os terroristas daquele dia. Mas quando eu os vi invadindo o Congresso Nacional, o meu sentimento naquele momento é que tinha um golpe de Estado em curso.”
Randolfe Rodrigues, que é formado em História, diz que temeu um desfecho semelhante ao do Chile nos anos 1970, quando o presidente Salvador Allende foi cercado no Palácio de La Moneda pelas tropas lideradas pelo general Augusto Pinochet. “Eu tive receio daquele Brasília – 8 de janeiro ser um 11 de setembro chileno de 1973.”
Brasília (DF) 11/04/2024 Senador Randolfe Rodrigues. Foto:Lula Marques/ Agência Brasil
A possibilidade de haver um novo golpe de Estado no Brasil era tão aventada que os roteiristas da produtora Porta dos Fundos criaram dois esquetes humorísticos simulando a mobilização de militares para fazer uma nova intervenção golpista.
“Havia já, né, essa sombra do golpe. Ela já estava presente há muito tempo, né?”, recorda-se o publicitário Antonio Tabet, um dos sócios e roteiristas da produtora. “Falava-se muito disso, havia muitas indiretas, uma comunicação truncada, umas ameaças veladas, e o fato de o governo da época [2019-2022] ser alinhado com ideais e interesses não exatamente democráticos, fazia com que esse assunto fosse efervescente.”
Na opinião de Tabet, os esquetes Golpe em Brasília e Golpe no Rio foram dissuasivos de alguns espíritos menos democráticos. “Eu tenho certeza que esses vídeos circularam muito, tem milhões de views cada um deles. E certamente bateu em alguém que queria fazer e que mudou de ideia vendo aquilo.”
“O humor informa de uma maneira simpática. Às vezes, uma pessoa assistindo a um telejornal, ela não consegue entender direito como funcionam as instituições, para que servem, o que é isso, qual é o real perigo, o real ridículo disso. O humor vai lá e joga um holofote na cara daquilo”, acredita o roteirista.
No dia 8 de janeiro, como que seguindo um roteiro bem ensaiado, milhares de pessoas que estavam acampadas no Setor Militar Urbano em Brasília iniciaram às 13h uma longa marcha até a Praça dos Três Poderes.
Às 15h, os golpistas conseguiram subir a rampa do Congresso para invadir e destruir prédio. Vinte minutos depois, outros vândalos derrubaram as grades de isolamento do Palácio do Planalto, subiram a rampa, quebraram os vidros da fachada e entraram no prédio. Às 15h37, iniciaram a invasão do edifício-sede do Supremo Tribunal Federal (STF).
A Agência Brasil enviou mensagem, na segunda-feira (6), ao advogado Paulo Bueno, defensor do ex-presidente Jair Bolsonaro, para manifestação, mas não obteve resposta até o momento. O espaço segue aberto.
*Com entrevistas de Ana Passos, Marieta Cazarré, Patrícia Araújo e Thiago Padovan, da TV Brasil
Há dois anos, no dia 8 de janeiro de 2023, o Brasil assistia a um dos episódios mais marcantes da história recente do país: os atos de invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, em Brasília. Revoltados com a derrota nas urnas, apoiadores do ex-presidente da República Jair Bolsonaro pediam o cancelamento das eleições, intervenção militar, a volta do AI-5 e o impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Mas uma pergunta ainda está sem resposta: quando exatamente começa o movimento golpista que culminou com os atos de 8 de janeiro?
O programa Caminhos da Reportagem desta segunda (6), às 23h, na TV Brasil, entrevista jornalistas, escritores, senadores, psicólogos, além de um ministro do STF e do Diretor Geral da Polícia Federal, para traçar a cronologia da tentativa de golpe. Todos coincidem na opinião de que o golpe começou a ser gestado muito antes do período final do governo de Bolsonaro.
Recentemente, um relatório da Polícia Federal, fruto de extensa investigação, apontou a existência de um plano, intitulado Punhal Verde Amarelo, que tinha como finalidade o assassinato do presidente Luís Inácio Lula da Silva; do vice Geraldo Alckmin; e do ministro do STF, Alexandre de Moraes.
“Creio que na primeira vez na história um inquérito se aprofundou tanto nessa temática e permitiu, infelizmente, nos mostrar a que momento chegamos e o quanto estávamos de fato muito próximos a um golpe de Estado”, afirma Andrei Rodrigues, Diretor Geral da Polícia Federal.
“Esse movimento é bastante anterior ao próprio Bolsonaro. Já vinha de uma insatisfação desde a Lava Jato e a grande movimentação pós 2013. A gente teve o impeachment da Dilma, a prisão do Lula. Então tem um grande caldeirão político em parte da sociedade que havia jogado a esquerda no que se imaginava ser um corner político. E Bolsonaro soube manipular muito bem esses sentimentos já na eleição de 2018, aventando a possibilidade de fraude eleitoral e a pauta do voto impresso”, explica o jornalista e escritor Leandro Demori.
A jornalista Juliana Dal Piva defende que o radicalismo foi sendo gestado ao longo do tempo e se intensificou durante a presidência de Bolsonaro. “Principalmente nos últimos meses, pós eleição, quando ele já não reconhece a vitória do presidente Lula e some das últimas cerimônias do governo. Agora nós sabemos que eles estavam planejando detalhadamente, inclusive imprimindo, um golpe”, afirma Dal Piva, em relação aos fatos apresentados no inquérito da Polícia Federal, que revelou a construção da tentativa de golpe de Estado.
A operação da PF, intitulada Contragolpe, revela que o plano foi criado no mês de novembro de 2022, com equipes formadas por militares das Forças Especiais (FE), os chamados kids pretos, que monitoravam o cotidiano e itinerários do ministro e do presidente.
“O que nós fizemos para permitir que isso acontecesse? O que nós devemos fazer para que se evite isso? Acho que a politização das Forças Armadas e da Polícia é muito ruim para o sistema e de alguma forma é a causa desse fenômeno que ocorreu”, afirma Gilmar Mendes, ministro do STF, em relação a participação de militares na tentativa de golpe.
A investigação da PF trouxe à tona o envolvimento de vários generais, tanto no plano Punhal Verde e Amarelo, quanto na incitação das manifestações e dos acampamentos, inflamando o clamor de bolsonaristas pela intervenção militar.
Um áudio, revelado pela investigação, mostra o general da reserva Mário Fernandes conversando com o então ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, Luiz Eduardo Ramos. Ele diz: “não dá mais pra gente aguentar essa p*. E outra coisa, nem que seja para divulgar e inflamar a massa. Para que ela se mantenha nas ruas. Talvez seja isso que o Alto Comando, que a Defesa, quer: o clamor popular, como foi em 64”.
No entanto, diversos entrevistados no programa concordam que, apesar da adesão à tentativa de golpe por alguns militares, as Forças Armadas foram fundamentais para a manutenção da democracia. “Como qualquer instituição feita por pessoas, havia pessoas a favor e contra. E o Alto Comando, isso as investigações estão mostrando, já tinha feito uma barreira para qualquer tentativa de virada de mesa ou de golpe de Estado”, conta Felipe Recondo, jornalista e escritor.